Retrato de um ato cívico de repúdio...
E lá estava eu novamente, chegando com disposição, afinal
uma figura nefasta, preconceituosa e racista à frente de uma comissão de direitos humanos e minorias
é no mínimo surreal. Passos firmes como nos tempos de juventude, a experiência,
contudo me fez ter um pé atrás quando vi a pequena aglomeração no local
combinado, não mais que 200 pessoas. Perda de tempo pensei, os atos cívicos
perderam a força, viramos ativistas de poltrona. E como já estava lá, mesmo
minha verve cidadã passando por alguns períodos de dormência não baixa a guarda,
resolvi me juntar; já éramos a essa altura umas 500 pessoas, o Laerte(1) parou ao meu lado,
trocamos algumas palavras e fomos interrompidos por uma repórter da rádio
Itatiaia. O parco grupo resolveu passar ao asfalto do cruzamento da Paulista(2) com a Consolação(3), Laerte convocado pelos
manifestantes a ir à frente, começamos a cantar e gritar palavras de ordem. Já
tomávamos o começo da Consolação, em frente ao finado Cine Belas Artes(4), pessoas começavam a
descer dos ônibus encorpando rapidamente o grupo, enquanto avançávamos descendo
a consolação o final da passeata continuava na Paulista, tal era o numero de
pessoas que ia se agregando. Retornamos em frente ao Sujinho(5) pelo sentido contrário retornando à
Paulista, já tomávamos os dois lados da Consolação, a essa altura já passávamos
de 2000 pessoas, homens, mulheres, homos e heteros, famosos, anônimos, negros,
brancos, enfim... gente. Voltamos a
descer a Consolação em direção à Praça Roosevelt(6), dava cada vez mais orgulho olhar para trás e ver
bandeiras, cartazes e a rua tomada por gente, muita gente, paramos em frente a
um cortiço, um rapaz e duas crianças remelentas sentadas à porta, sem entender
bem, mas incentivando e sorrindo, e do alto de uma das janelas, a cena mais
significativa do dia; ao entoarmos o hino nacional, uma senhora negra de uns 80
anos aproximadamente sai de uma das janelas do cortiço e cantando rege o nosso
coro, feliz e sorridente foi aplaudida. Por rádio entre vários pontos da
passeata já se estimava em torno de 15mil participantes. Seguimos com mais
vigor e mais animados ao não ver mais asfalto, mas simplesmente gente, pessoalmente
acredito que éramos menos, ninguém saberá ao certo e no fundo não importa! Na Praça Roosevelt vários oradores representando
entidades ou simplesmente suas próprias idéias e convicções. Os líderes do
agito, no geral bem mais jovens que eu, como seria normal não resistiram ao um
megafone na mão e precisaram dos seus 5 minutos de fama, faz parte do
movimento, faz parte da idade, já vi isso ocorrer outras vezes, o que não
invalida de forma alguma o movimento. O momento “púlpito” foi vencido pelo
clamor popular de voltar à rua. Naquele momento se juntavam a nós os
manifestantes anti-Renan Calheiros, seguimos pela Rua Augusta(7) sem sentir a subida,
realmente sentindo o apoio público, fomos aplaudidos várias vezes... flagrei
por um momento até um dos policiais que faziam o cordão de isolamento gritando
palavras de ordem timidamente conosco, chegávamos à Av. Paulista, mesmo
interrompendo o trânsito das duas pistas por um bom tempo o apoio era
incontestável, buzinas, aplausos, sorrisos, alguns saíam de seus carros para
dar apoio, em frente ao MASP(8)
ocupamos as duas pistas e o vão livre, agradecimentos depoimentos comoventes e
o melhor de todos os cartazes em minha opinião no meio da multidão “Odeio
passeatas, estou aqui por dever cívico!”, finalizamos cantando mais uma vez o
hino nacional e aplaudindo a nós mesmos, merecidamente, afinal mesmo com atos
relativamente pequenos o civismo e a manifestação popular estão vivos. Fora
Marcos Feliciano(9)!!!!
(1) Cartunista, que nos últimos tempos
adquiriu notoriedade além do seu trabalho também por se vestir de mulher
(crossdresser)
(2) Avenida Paulista, maior centro
financeiro do país, onde também estão escritórios de várias multinacionais e
alguns consulados.
(3) Rua da Consolação, principal ligação
entre a Av. Paulista e o centro da cidade.
(4) Cine Belas Artes, até pouco tempo o
principal cinema da cidade em exibição de filmes de arte e alternativos
(5) Sujinho, botecão que começou no
final dos anos 70 realmente com uma grande clientela e higiene no mínimo
questionável, hoje é um misto de boteco e restaurante e muito bem frequentado
(6) Praça Roosevelt, local que abrigou
diversos cineclubes durante os anos 80, tem uma das mais tradicionais igrejas
da cidade e há poucos anos é um ponto de encontro de skatistas
(7) Rua Augusta, (mais especificamente o
“baixo Augusta”) local da vida noturna, onde a fauna é mais eclética tanto em
gosto musical quanto em aparência, todos convivendo bem
(8) MASP – Museu de Arte de São Paulo,
um dos acervos mais ricos do país, e a construção com maior vão livre do país,
projetado por Lina Bo Bardi
(9) Marcos Feliciano, deputado federal
pelo PSC, pastor que se tornou notório por declarações racistas, sexistas e
homofóbicas além do “comércio da fé”.